AEPGA

 

O reencontro da Dona Inácia e o seu burro Perdigão

Maria Inácia Jorge Parreira cresceu sempre com burros, hábito que herdou dos seus pais. Deixou a aldeia natal há três anos, São Joanico, para viver no lar da Santa Casa da Misericórdia do mesmo concelho, em Vimioso, destino inevitável pelos quase 87 anos de vida.

O seu último burro foi o Perdigão, um burro que ia comprar, mas que acabou por lhe ser oferecido por uma prima de Genísio. Por muito tempo, guardou o dinheiro que serviria para pagar o burro, mas a prima nunca o aceitou, e por isso não precisou de o usar. O Perdigão teria uns 10 anos quando conheceu a Dona Inácia, e com ela viveu por, pelo menos, mais outros 10. Foi quando as forças já não chegavam para tratar do burrico, que a família da Dona Inácia ligou à AEPGA pedindo auxílio e um abrigo para ele. 



Assim, em 2021, o Perdigão foi acolhido pela AEPGA. Inicialmente, foi para o Centro de Atividades Lúdico Pedagógicas do Burro de Miranda (CALP), por ficar perto da aldeia de São Joanico e permitir que a Dona Inácia o visitasse frequentemente. "Ai o meu burrico. Mas ele vai ficar bem aqui? Posso vir a vê-lo? E trazer alguma comida?", disse ela, depois de ter feito todo o percurso a pé desde casa ao lado do Perdigão, para que “o burrinho não achasse estranho”. Esta foi uma caminhada mais curta e menos árdua do que aquela primeira que fizera quando o conheceu. De Genísio a São Joanico eram uns 14 quilómetros, e, nessa altura, o burro não queria andar. Fugiu-lhe a meio do percurso, voltou atrás para o apanhar e não se deixava agarrar. Esta relação de amizade foi uma conquista que levou o seu tempo.

A Dona Inácia ia visitar o Perdigão muitas vezes. Contudo, aquele não era o melhor espaço para ele. Para um burro idoso, os estábulos do CALP não tinham as condições ideais, e a companhia de outros burros mais jovens, energéticos e reguilas, também não era a mais adequada. O Centro de Acolhimento do Burro (CAB) era realmente o lar de que o Perdigão necessitava, onde, também, o acompanhamento veterinário iria ser mais regular. À Dona Inácia custou aceitar que a distância iria aumentar, mas só desejava o melhor para o seu burrinho.



Na manhã de 12 de fevereiro de 2025, viviam Dona Inácia e Perdigão cada um em seu lar da terceira idade. No céu azul brilhava um sol de inverno animador, que parecia adivinhar a surpresa que tínhamos preparado nesse dia. A AEPGA tomou a iniciativa de levar a Dona Inácia a visitar o Perdigão ao Centro de Acolhimento do Burro, para que pudesse rever o seu burrico. Soube de véspera que a iríamos buscar, e esperou toda a noite ansiosamente: “Eu estava na cama, a dormir, e parece que ouvi assim uma voz ‘Vais amanhã a vê-los, aos burros. Quando deixei de ter animais, sonhava muitas vezes com eles.”. Durante a viagem ia apreciando a paisagem, aldeia após aldeia. As cegonhas que já chegaram, as canhonas1 a pastar… “Foi aqui que o viemos buscar!” - exclamou ao ver a casa que era das primas, quando passámos por Genísio. Foi recordando o tempo vivido com o Perdigão.



Ele gostava da nossa comida. Dávamos-lhe aveia, feno e tudo o que tínhamos. Pôs-se logo gordo! Um dia fui às castanhas com o Perdigão e outra burra, a Andorinha. Pus-lhes as sacas nos alforjes, no lombo. Botaram-se a fugir! Quem os agarrava? Quando os apanhei ralhei-lhes, e depois de os meter na loja2 , olhavam para mim como quem diz ‘Fizemos mal’. Parecia que só lhes bastava falar. Depois fez-se um burro valente e manso, bom para a carroça! O Perdigão levou muita carroça de fardos. Às vezes, dizia ao meu marido ‘Tira-lhe um fardo que é muito para o burro!’, e ele tirava, mas o burro era muito valente! Antigamente quase todos tinham burros, mas os meus eram os mais gordos! Às vezes dava-lhe as côdeas do pão que sobravam da mesa. Gostava de maçãs, de pêras e de tudo. O meu marido com as vacas e eu com os burros… Tratavamo-los muito bem.”

De memória em memória, chegámos ao destino.

A ver se o conheço!” - observando os burros no lameiro - “É este! O meu burro é este! Ó Perdigão! Perdigão! Já não me conheces? Ah, Perdigão que te vim ver! Tu a mim não me vais ver! Estás bom. Ah, burrico, burrico, tu ainda estás melhor do que estou eu!” - cobrindo-lhe o focinho com beijos - “Eu gostava muito dele!” - suspirou emocionada, com as lágrimas a espreitar. O Perdigão ali se deixou ficar junto da Dona Inácia. Trocaram-se muitos carinhos até à despedida. “Perdigão já me vou! Fico muito contente, estás muito bem!



No regresso, perguntámos-lhe o que sentiu, e a resposta da Dona Inácia foi clara: “Senti saudades! Dele e do meu marido. Sinto saudades de quando andava eu e o meu homem no termo3 . Não me rendiam os dias, passavam rápido. Tenho muitas memórias...

Quando os momentos são felizes o tempo passa a voar, e a voar passou a manhã. O almoço aguardava. “Outra vez, quando calhar, vão outra vez por mim.”, pediu a Dona Inácia ao saudar-nos! Assim esperamos fazê-lo por muitos anos, seus e do Perdigão!

Dias depois de escrevermos este texto, recebemos a triste notícia do falecimento da Dona Inácia. O nosso desejo de repetir aquela manhã tomou a forma de homenagem, a memória de um momento em que foi muito feliz!




Dona Inácia Parreira com o marido, César Augusto Pêra, e o burro Perdigão no evento Sons e Ruralidades em 2018.

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1 canhonas - palavra em mirandês para “ovelhas”
2 loja - curral, local onde se guarda o gado
3 termo - palavra utilizada para todos os terrenos que estão fora daquilo que são os limites da aldeia
enquanto povoação

Fotografias de Cláudia Costa